Professor Adérito
Saber honrar os familiares que me antecederam na profissão, esforça-me por um trabalho sério e produtivo, procurar formar crianças que viessem a saber estar no mundo num sentido de respeito pelos outros e por si próprios, a saberem conquistar, na solidariedade, um “lugar ao sol” pelo seu saber, pelo seu aprumo, pelas suas qualidades morais e pelo seu trabalho honesto, foram sem duvida, os principais projectos que sempre tive em mente e pelos quais sempre me esforcei.
Se consegui ou não, concretizar esses projectos, penso que não cabe a mim julgar-me, mas sim a todos aqueles com quem convivi, e particularmente, a cada um daqueles que foi meu aluno.
Quanto às dificuldades é obvio que não faltaram, especialmente até logo de princípio, para pôr em prática os empreendimentos do meu pensamento. Basta referir que quando cheguei, a escola de Lousado era constituída, somente por uma sala decerto modo exígua sem recreio próprio, sem qualquer sanitário, com cerca de sessenta alunos repartidos pelas quatro classes, sentados a três e até a quatro em cada carteira.
Assim era a escola que em Outubro de 1944 encontrei em Lousado no Lugar de Montezelo. O que na verdade não foi de modo algum muito animador.
Se juntarmos a esta pobreza a carência de materiais didácticos, o estado de conservação das paredes e do próprio mobiliário, o desconforto nos dias de inverno ou de chuva e, ainda, a extraordinária exiguidade de verba para o expediente e limpeza, a qual o pouquíssimo ou nada chegava, parece que nem tudo eram rosas naquele tempo.
Lembro-me de diversos alunos meus, embora a minha memória esteja bastante enfraquecida pela idade.
Recordo de alguns pela sua aplicação ou pela sua compostura, pela sua inteligência ou pela sua introversão. Recordo, muitas vezes pequenas coisas que me trazem à memória este ou aquele aluno.
No que respeita a peripécia estou a lembrar-me de uma que aconteceu em certa ocasião, no último ano em que a escola estava, ainda em Montezelo.
Pouco tempo passava das nove horas quando alguém bateu à porta.
Fui abrir a porta e o inspector entrou.
Vinha fazer uma visita de inspecção como era hábito e vulgar naquela época. Nesses tempos havia uma certa fiscalização e exigência dos serviços escolares.
Depois das primeiras lições da manhã a que assistiu chegou a hora do intervalo e do recreio. Os alunos saíram, o professor arrumava uns cadernos e o inspector foi até à janela que dava para a rua.
De repente, muito espantado e bastante agastado, o inspector vociferou:
– Senhor Cardoso Teixeira olhe para aquilo!
Fui ver!
A maior parte dos alunos, virados para a parede do quintal que estava a seguir à escola, satisfaziam as suas necessidades de micção.
– Que posso eu fazer Senhor Inspector? – Perguntei eu – Eles precisam de urinar!…
– E o senhor deixa que eles façam isso na rua?! Isto é uma vergonha! Não sabe mandá-los aos mictórios?
– E onde é que eles estão? Não existem!
– Isto é incrível! – Respondeu irado o inspector – Então o senhor é aqui professor, já passaram cinco anos e não reclamou, ainda uns sanitários?!
Calei-me, fui buscar o livro de registos da correspondência expedida, folheei-o, apontei um registo e respondi.
– Reparei novamente e fui-lhe mostrando a minha insistência nas diversas vezes que, em cada ano, me tinha esforçado por eles sem que tivesse obtido êxito.
Convencido mas ainda mal-humorado respondeu entre dentes:
– Nunca me aconteceu uma como esta!
Mas tenho Saudades!?…Esta palavrinha inigualável que só a língua portuguesa possui para exprimir o amargo – doce, o nostálgico – alegre da alma, quando se recorda a vivencia dos factos ou das circunstâncias, dos acontecimentos passados.
Sim! Tenho saudades e muitas, desses vinte anos que passei por aqui a leccionar. Tempos de quando era bastante mais jovem, tempos de sonhos, mas também tempos, muitas vezes, de dificuldades, de trabalho árduo e mal remunerado, ou ainda, de alguma tranquilidade e de muitas alegrias também.
Tenho mesmo saudades de tantas, tantas coisas!
Dos alunos, por exemplo, que chegavam do exame no final do ano com a alegria da distinção ou da aprovação, estampada no rosto, que compensava o professor de todos os sacrifícios!
Tenho saudades da inauguração da nova escola, que pela criação de um segundo lugar masculino e outro feminino absorveram metade dos alunos e alunas que tinham estado a meu cargo e da Dona Laura.
Tenho, ainda, saudades, por exemplo, do entusiasmo dos meus alunos quando pensei criar uma biblioteca escolar de livros que eles levavam para lerem em casa.
Lembro-me, ainda, daquele mapa planisfério em relevo de gesso com 1,80m x 0,90m representativo da viagem de Vasco da Gama que, foi com ajuda dos alunos construído.
Recordo ainda, com muita saudade, aqueles teatros infantis levados à cena no teatrinho da Casa do Povo. Quem daquele tempo, não se lembra deles?
Num sentido de formação moral e cultural, na intenção do desenvolvimento estético, cénico e recreativo dos alunos, através da dança, da comedia ou da “revista”, do canto ou da poesia, se mobilizaram sempre, os quatro professores daquela época e até, o próprio pároco. Lembro o entusiasmo e a azáfama com os ensaios, lembro a execução dos cenários, um para cada acto, um para cada cena, a iluminação, etc., etc.
E os passeios escolares organizados de forma a levarem os alunos ao conhecimento de outras terras, dos seus monumentos históricos e dos seus costumes?
E para não alongar mais, porque doutro modo, muitíssimo mais haveria a recordar, lembro-me com muita saudade, daquele tempo em que pensei fazer um parque infantil para os alunos de toda a escola, o qual acabei por construir com ajuda do Sr. Adelino Leitão que ao saber do meu projecto logo me acarinhou. Socorrendo-me, mais da dadiva de ferros usados e tubos velhos que pude escolher na sucata da Mabor (que ele me proporcionou) fiz nascer deles baloiços, os balances, a roda de cavalinhos, o “escorrega”, etc.,
Quem não se lembra ainda, da sua inauguração com a presença de Sua Eminência o Senhor Cardeal Patriarca Cerejeira, do Director Escolar e, mais que tudo, da alegria de todos os alunos e alunas daquele tempo?
Tempo que não volta, certamente, mas tempo que recordo com saudade.
Tenho uma casa no Porto mas está numa rua de muitíssimo movimento.
O barulho e a poluição dos automóveis incomodavam-nos. Por tais razões viemos para Lousado e o sossego, o bom ar e a proximidade de um filho, foram as razões fortes para que cá ficássemos novamente.
Sentimo-nos mais à vontade, com maior tranquilidade e, por isso, continuamos aqui, na casa que cá deixamos.
Ocupo o meu tempo de múltiplas formas.
Uso, para mim, o lema de que “parar é morrer”.
Procuro tirar o melhor partido dos Dons que Deus me deu trabalhando em todas as áreas que se me oferecem. Leio, ouço música, só vejo televisão um pouco à noite e rezo agradecendo a Deus, também, a longevidade, a saúde, a família, especialmente os filhos, e os talentos que me entregou e me preocupo fazer render.
Falar do ensino hoje em Portugal, não é para mim fácil.
Já estou aposentado, há mais de dez anos e não tenho acompanhado de perto, significativamente, a sua evolução?
À excepção das escolas comerciais e industriais, no meu tempo, por via de regras, o ensino procurava dar aos alunos uma formação e cultura geral, o mais vastas possível, isto é, o ensino era mais teórico que pratico.
Ao chegar à universidade o aluno era canalizado para o ramo superior e especifico por ele escolhido.
O Estado talvez se empenhasse mais, então, em fazer cumprir, exigir resultados, que reformar e dinamizar.
Os compêndios de então eram particularmente os mesmos dez ou quinze anos depois, aos quais, não faltava a respectiva índole ideológica.
Na época presente suponho que o ensino tem vindo a acompanhar o progresso de uma forma mais racional e efectiva.
O alargamento da escolaridade, o desenvolvimento da rede pré – escolar o ensino especial admitido na classe normal são, por exemplo, factores de progresso e ajuda que anteriormente não existiam.
Também o interesse mais efectivo da família através da Comissão de Pais, e não só, a avaliação regular dos alunos sem que o professor tenha de se preocupar por um rendimento menor, a melhoria de assistência aos mais desfavorecidos, e ainda, os factores externos como a televisão e a comunicação social actuais, o nível de vida bastante melhor que se experimenta agora, são meios de desenvolvimento que levam o jovem presente a ser mais desembaraçado, mais vivo, mais desinibido e mais apto.
Em contrapartida o aluno de agora, porque relativamente cedo começa a encarreirar na especialidade que lhe interessa e mercê de programas menos voltados para o ensino da língua, da geografia, da historia, etc… parece não ficar com tanta cultura geral como anteriormente, mas julgo, todavia, que mais depressa adquire a formação especifica que o leva à conquista do emprego e à luta pela vida.
Presentemente, julgo que a maior parte dos chefes de família de Lousado conjuntamente com suas esposas, foram alunos dos professores que aqui leccionaram desde 1944 a 1965 dos quais, eu e minha mulher, fazemos parte.
Quero, antes de tudo, saúda-los bem como a todos restantes Lousadenses.
Mas, porque Lousado sempre foi a terra de nobres tradições e de bons hábitos, terra de boa fama e de vultos bem ilustres, orgulho-me de nela ter concorrido, de certo modo, para a formação intelectual e moral de muitos dos seus filhos.
Como mensagem principal, faço votos para que todos aqueles que formam a população de Lousado possam dar as mãos e promovam todos os seus esforços, no sentido de uma autêntica manifestação de bairrismo, para que Lousado se converta numa terra de progresso intenso e de importância capital.